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25 de dezembro de 2011

O Equilibrista

Nem sempre aquilo que a gente sonhou é, realmente, o que a gente sonhou.
Aliás acho que quase nunca. Se a gente sonhou demais ou foi longe, o sonho sempre pega a gente de surpresa quando a gente menos espera, nos nossos piores defeitos, e a água bate tanto até que fura, mas dói. Ninguém quer se livrar daquele sonho antigo, ser modesto, reconhecer que não precisa. 
Fala sério, quem quer isso? Quem quer abdicar do príncipe encantado, da sorte de ganhar na megasena, da mentira de ter um filho perfeito, ou de se crer alguém especial, fodão, az no volante, perigo constante... ou é isso ou é olhar-se no espelho e encarar que comeu rabanadas demais no Natal, e tomou cerveja demais o ano todo, e está barrigudo e chato, e está ficando velho? Ui...
Mas é preciso dirigir os exércitos contra si mesmo, a vida exige isso de tanto em tanto.
Equilibrar as coisas é essencial. Modéstia é essencial. É feito o humor.
A sorte é se a gente sonha pouco - daí o mistério sempre pega a gente na abundância, garantia de sensação de gratidão.
E esse foi o caso do Paul, que realmente mereceu. Pois é um verdadeiro equilibrista, fato.
O Morning Glory viajou muito por aquelas águas do Tirrenio. Eu até tive a coragem (e loucura) de levá-lo com um tripulante inexperiente, sem carta náutica, para a Liguria. Foi o teste máximo de ciúme pro Paul - pelo barco e por mim. Claro que ele não passou - ou melhor, eu não passei.
Mas fui sincera, pois esse tipo de coragem é de minha natureza. E apesar do tripulante ser um italianinho jovem malhado, e bem desejável, eu só queria ir de encontro a ele. Só.  


15 de dezembro de 2011

TER

Pra que TER? Questionei, como sempre, essa questão de possuir - e dessa vez, um barco! E após se TER, o que FAZER com aquilo que se tem? Que responsabilidade imensa - pensei. 
Não estava errada.
Um veleiro é custoso de se manter. A idéia era fazer charter, ou seja: passeios. O que fazíamos em barcos de terceiros, agora, estava a nosso cargo. Não me agradava a idéia, fui sincera. Mas como era a realização de um sonho... participar do sonho VALEU A PENA.
Aturar aquele povo fútil e fora da realidade que embarca em veleiros de salto alto e sem querer molhar a bundinha, no entanto, é dose pra leão.
Estávamos em La Maddalena quando o Paul viu, pela primeira vez, o Morning Glory, um Sparkman Stevens de 43 pés, bojudíssimo (orça bem), lindo, mas em estado de aparente abandono. Soubemos que era resultado do espólio de uma separação entre alemães. 
Depois de alguns contatos, entramos no meu Renault velho de guerra, com motor dois tempos, e pegamos a estrada pelos alpes alemães, até chegarmos a Garmisch-Partenkirshen. Lá, conhecemos a proprietária do barco: com dois filhos, muito afetada pela separação, ela aceitou prontamente a oferta, e foi tão generosa, que nos alojou em casa, e nos deu de comer o arroz-com-feijão alemão: salada de batata com salsicha.
Foi dessa forma que compramos um veleiro em plena região de montanha, em apenas 30 minutos (pois lá os cartórios realmente funcionam!!!!), e com neve até os joelhos.
Esse fato nos fez encarar de frente o que é TER. A bem da verdade, é um verbo que serve de base para definir socialmente toda a condição humana. Pensa bem: o que é ter uma casa? E uma família? O que é ter um amor? E ter uma doença, o que é? O que é ter um filho? 
Será que "temos" mesmo = possuir, valorar, e consequentemente, julgar? Ou será que um verbo melhor para isso não seria "SER PRESENTEADO PELA VIDA"?  


7 de dezembro de 2011

Limbo

Me diz se concorda - nós humanos, somos bem gulosos, não? Porque precisamos de mais e mais o tempo todo? Que papo é esse de evolução e tudo o mais???
O momento após nos darmos conta que o sonho foi realizado é crucial. A semente da continuidade está aí. Chamo esse momento de limbo. De primeira é uma satisfação só. Depois, a gente se sente desesperado, desolado, triste, como se o amor tivesse terminado. Mas, cuidado! Amor não é paixão. Se a gente entrar na dança niilista, acaba acreditando mesmo que nada valeu a pena. Mas não é assim.
O limbo é permanentemente grávido.
A semente nós já plantamos, mesmo antes do novo sonho surgir na mente. E é ali que acontece o momento mágico do embrião romper a casca. Aí está o segredo da sustentabilidade: adaptabilidade, amor, vontade de viver, cooperação, mente saudável, devoção.
Assim foi depois do Alzavola.
Dizíamos: nossa, já fizemos tanto, e ainda há tanto por fazer. Mas não mais desse jeito. Tem que ser de um jeito novo.
Foi aí que conhecemos o Lucca, um dentista, aficionado por motos antigas, que mora em Bologna. Ele arrancou meus sisos com tanta precisão e destreza que meia hora depois, já estava comendo pizza. Fazia isso com um instrumento parecido com um saca-rolhas. Minha mordedura estava tão errada que ele me levou a um colegiado de dentistas para que examinassem como aquilo havia afetado os meus músculos buco-faciais. Curioso é que nem eu nem o Paul jamais havíamos notado isso.
O Lucca ficou muito amigo do Paul e nos convidou para trabalhar na praia, vendendo picolé e sanduíche, e ofereceu, ainda, hospedagem na casinha dele em La Madallena, uma ilhazinha bem ao norte da Sardenha. Olha só uma foto de lá. Adivinha se a gente aceitou ou não.
A Sardenha é uma ilha com pedras magníficas e água azul cristal, gente muito simples que fala o Sardo (que nada tem a ver com o italiano), javalis aos montes, resorts estupendamente caros, e nenhuma árvore de sobra, além das que produzem cortiça.
Nossos vizinhos nos convidavam para jantar de vez em quando, simplesmente dizendo “aiô”. O senhor servia um terrível vinho caseiro e a senhora, deliciosas e inesquecíveis massas, como o raviolão de ricota di peccora (ovelha) com limão, servido com molho de carne assada, e o fetuccini com molho de cabeças de passarinho. Claro, a sala de jantar era tão escura que só descobri que eram cabeças de passarinho bem depois de comê-las.
Assim fomos juntando uma grana para realizarmos o nosso novo sonho: um barco próprio. Ou melhor, o sonho do Paul. Conseguimos.
Porém, não era o meu sonho. Naquela época eu já começava a pensar em voltar pro Brasil. Pena que eu não tinha muita idade e não soube apreciar aquele momento tanto quanto merecia. Mas valeu a pena. E quanto.

Eu vendendo picolé