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25 de dezembro de 2011

O Equilibrista

Nem sempre aquilo que a gente sonhou é, realmente, o que a gente sonhou.
Aliás acho que quase nunca. Se a gente sonhou demais ou foi longe, o sonho sempre pega a gente de surpresa quando a gente menos espera, nos nossos piores defeitos, e a água bate tanto até que fura, mas dói. Ninguém quer se livrar daquele sonho antigo, ser modesto, reconhecer que não precisa. 
Fala sério, quem quer isso? Quem quer abdicar do príncipe encantado, da sorte de ganhar na megasena, da mentira de ter um filho perfeito, ou de se crer alguém especial, fodão, az no volante, perigo constante... ou é isso ou é olhar-se no espelho e encarar que comeu rabanadas demais no Natal, e tomou cerveja demais o ano todo, e está barrigudo e chato, e está ficando velho? Ui...
Mas é preciso dirigir os exércitos contra si mesmo, a vida exige isso de tanto em tanto.
Equilibrar as coisas é essencial. Modéstia é essencial. É feito o humor.
A sorte é se a gente sonha pouco - daí o mistério sempre pega a gente na abundância, garantia de sensação de gratidão.
E esse foi o caso do Paul, que realmente mereceu. Pois é um verdadeiro equilibrista, fato.
O Morning Glory viajou muito por aquelas águas do Tirrenio. Eu até tive a coragem (e loucura) de levá-lo com um tripulante inexperiente, sem carta náutica, para a Liguria. Foi o teste máximo de ciúme pro Paul - pelo barco e por mim. Claro que ele não passou - ou melhor, eu não passei.
Mas fui sincera, pois esse tipo de coragem é de minha natureza. E apesar do tripulante ser um italianinho jovem malhado, e bem desejável, eu só queria ir de encontro a ele. Só.  


15 de dezembro de 2011

TER

Pra que TER? Questionei, como sempre, essa questão de possuir - e dessa vez, um barco! E após se TER, o que FAZER com aquilo que se tem? Que responsabilidade imensa - pensei. 
Não estava errada.
Um veleiro é custoso de se manter. A idéia era fazer charter, ou seja: passeios. O que fazíamos em barcos de terceiros, agora, estava a nosso cargo. Não me agradava a idéia, fui sincera. Mas como era a realização de um sonho... participar do sonho VALEU A PENA.
Aturar aquele povo fútil e fora da realidade que embarca em veleiros de salto alto e sem querer molhar a bundinha, no entanto, é dose pra leão.
Estávamos em La Maddalena quando o Paul viu, pela primeira vez, o Morning Glory, um Sparkman Stevens de 43 pés, bojudíssimo (orça bem), lindo, mas em estado de aparente abandono. Soubemos que era resultado do espólio de uma separação entre alemães. 
Depois de alguns contatos, entramos no meu Renault velho de guerra, com motor dois tempos, e pegamos a estrada pelos alpes alemães, até chegarmos a Garmisch-Partenkirshen. Lá, conhecemos a proprietária do barco: com dois filhos, muito afetada pela separação, ela aceitou prontamente a oferta, e foi tão generosa, que nos alojou em casa, e nos deu de comer o arroz-com-feijão alemão: salada de batata com salsicha.
Foi dessa forma que compramos um veleiro em plena região de montanha, em apenas 30 minutos (pois lá os cartórios realmente funcionam!!!!), e com neve até os joelhos.
Esse fato nos fez encarar de frente o que é TER. A bem da verdade, é um verbo que serve de base para definir socialmente toda a condição humana. Pensa bem: o que é ter uma casa? E uma família? O que é ter um amor? E ter uma doença, o que é? O que é ter um filho? 
Será que "temos" mesmo = possuir, valorar, e consequentemente, julgar? Ou será que um verbo melhor para isso não seria "SER PRESENTEADO PELA VIDA"?  


7 de dezembro de 2011

Limbo

Me diz se concorda - nós humanos, somos bem gulosos, não? Porque precisamos de mais e mais o tempo todo? Que papo é esse de evolução e tudo o mais???
O momento após nos darmos conta que o sonho foi realizado é crucial. A semente da continuidade está aí. Chamo esse momento de limbo. De primeira é uma satisfação só. Depois, a gente se sente desesperado, desolado, triste, como se o amor tivesse terminado. Mas, cuidado! Amor não é paixão. Se a gente entrar na dança niilista, acaba acreditando mesmo que nada valeu a pena. Mas não é assim.
O limbo é permanentemente grávido.
A semente nós já plantamos, mesmo antes do novo sonho surgir na mente. E é ali que acontece o momento mágico do embrião romper a casca. Aí está o segredo da sustentabilidade: adaptabilidade, amor, vontade de viver, cooperação, mente saudável, devoção.
Assim foi depois do Alzavola.
Dizíamos: nossa, já fizemos tanto, e ainda há tanto por fazer. Mas não mais desse jeito. Tem que ser de um jeito novo.
Foi aí que conhecemos o Lucca, um dentista, aficionado por motos antigas, que mora em Bologna. Ele arrancou meus sisos com tanta precisão e destreza que meia hora depois, já estava comendo pizza. Fazia isso com um instrumento parecido com um saca-rolhas. Minha mordedura estava tão errada que ele me levou a um colegiado de dentistas para que examinassem como aquilo havia afetado os meus músculos buco-faciais. Curioso é que nem eu nem o Paul jamais havíamos notado isso.
O Lucca ficou muito amigo do Paul e nos convidou para trabalhar na praia, vendendo picolé e sanduíche, e ofereceu, ainda, hospedagem na casinha dele em La Madallena, uma ilhazinha bem ao norte da Sardenha. Olha só uma foto de lá. Adivinha se a gente aceitou ou não.
A Sardenha é uma ilha com pedras magníficas e água azul cristal, gente muito simples que fala o Sardo (que nada tem a ver com o italiano), javalis aos montes, resorts estupendamente caros, e nenhuma árvore de sobra, além das que produzem cortiça.
Nossos vizinhos nos convidavam para jantar de vez em quando, simplesmente dizendo “aiô”. O senhor servia um terrível vinho caseiro e a senhora, deliciosas e inesquecíveis massas, como o raviolão de ricota di peccora (ovelha) com limão, servido com molho de carne assada, e o fetuccini com molho de cabeças de passarinho. Claro, a sala de jantar era tão escura que só descobri que eram cabeças de passarinho bem depois de comê-las.
Assim fomos juntando uma grana para realizarmos o nosso novo sonho: um barco próprio. Ou melhor, o sonho do Paul. Conseguimos.
Porém, não era o meu sonho. Naquela época eu já começava a pensar em voltar pro Brasil. Pena que eu não tinha muita idade e não soube apreciar aquele momento tanto quanto merecia. Mas valeu a pena. E quanto.

Eu vendendo picolé

26 de novembro de 2011

Alzavola

E então deixamos a Europa no Alzavola, um ketch de 77 pés construído em 4 centímetros de teca birmanesa, que pode ser chamado de "Clássico Aconchegante". Aliás, muito bem administrado por seu proprietário, um respeitado navegante e arquiteto florentino: Enrico Zaccagni, ou simplesmente, Kiko. Simples assim. E ele é simples mesmo. Um verdadeiro pirata na alma.
Detalhe: pirata rádio-amador. Porque esse não joga os cabelos ao vento, não. Ele dissemina a palavra - em italiano - pelos sete mares desse mundo.
Vale saber que esse barco foi construído em 1924, em Dartmouth, pela Philip & Son, para Sir Walter Ramsey Kay, e Zaccagni a abraçou há 36 anos, ainda como Gracie III.

É navegar com pessoas como Chicco, um verdadeiro poeta do mar, e Nicole, grande mamma italiana, a bordo de veleiros como o Alzavola, que é um sonho vivo, e bem mantido, que fazem valer a pena velejar a qualquer preço.
Em geral, melhor lembrar que nós temos valor, pois tudo tem limite.
Saúde, e Obrigada, vida, pelo que me deu. 

Chicco (Kiko) e sua equipe no Alzavola em regata

24 de novembro de 2011

Quando Menos é Mais

Em Antibes trabalhamos por algum tempo a bordo do Speedy Go. Era um lindo Maxi de regata transformado em iate de luxo, com o interior todo em madeira de pera, tapete branco e o escambau. Chique mesmo. O proprietário era algum político italiano que nunca conheci (ainda bem). Nem é preciso dizer que ralei muito. Um casal de italianos chegou um tempo depois: Cinzia e Piero. Ela fazia os melhores sanduíches desse planeta e de outros. No final, nos ofereceram para acompanhá-los a bordo, destino ao Pacífico, mas recusamos com carinho, o que, no final, foi muito bom - ouvimos dizer que a Cinzia deixou o Piero em alguma ilha remota e fugiu com o Australiano que foi constratado no nosso lugar.
E como se não bastasse, também trabalhei a bordo de outros veleiros. A bordo do Arayan melhorei meus conhecimentos gastronômicos e aprendi a aproveitar a maravilhosa cave cheia de Chablis...
O Arayan também nos levou a uma regata em Saint Tropez onde tive a alegria de velejar pertinho do Eric Tabarly e seu Pen Duick. Ele era um belo homem - sorridente, simples, positivo, um privilégio de se estar ao redor. Um pouco depois (1998) a criatura desaparece no mar.
Aceitar mentalmente o fim é difícil, mas algo que precisamos aprender. Aceito melhor quando penso: é quando menos é mais.

Eric Tabarly a bordo do seu Pen Duick

19 de novembro de 2011

Liberdade

Salvos pelo gongo. Lá fomos nós embarcados no Maxi Speedy Go, com gente muito alegre e divertida, e Phillipe Barbé, o capitão francês de temperamento suave. Só não dava para falar a palavra lapin - o cara arrancou as receitas de coelho do livro de culinária de bordo - e nem fazer qualquer coisa importante na sexta feira. Superstições do mar, pra que te quero. A rota foi Faial - Gibraltar - Málaga (vinho jerez de primeira) e Antibes. Que barco! Com a empopada dava pra surfar e fazer uns 18 a 20 nós.
E que beleza a Côte D'Azur! 
No Port Vauban, em Antibes (checa o visual), quando sopra o Mistral dá pra ver a neve no topo dos Alpes - com aquele castelo ao fundo, é deslumbrante. Acabamos alugando um apartamento lá porque continuamos trabalhando no Speedy Go... mesmo após a entrega.
Ali, algo muito mágico nos aconteceu. 
Um dia fomos a praia e decidimos, do nada, escalar os remparts (o muro de pedra) da cidade. Quando chegamos em cima, viramos pro lado e pertinho, havia um petrel do mar estatelado no muro, com o olhar super assustado. Imediatamente fomos pegá-lo e constatamos que ele havia perdido a capacidade de vôo, pois estava com patas e parte das asas cobertas de resina de pinheiro - o sul da França é cheio dessas árvores.  
Levamos o pássaro ao barco e começamos a tentar remover a resina. O pássaro, estressadíssimo. Após tentar banho de água e sabão, e álcool, conseguimos remover a maioria com um algodão embebido em tricloro etileno, e finalizamos a operação com polvilho antisséptico Granado. O bicho revoltado bicava a mão do Paul sem parar, mas resistimos. Levamos a ave pro deck, onde havia uma ruazinha, e soltamos o petrel em cima de um carro. Me lembro como se fosse ontem dos piados, que soavam como bronca, e, de fato, a sua expressão era de um bicho aborrecido. De repente, do nada, o pássaro alçou vôo, deu um rasante no espelho d`água - a ponto de acharmos que ele ia afundar - e começou a subir, subir, subir, subir.... até desaparecer no céu.
Foi uma cena tão gratificante - tão bom libertar uma criatura assim, que essa sensação ficou imprimida na minha alma pra sempre. Bom compartilhá-la com vocês.

15 de novembro de 2011

Rumo ao Desconhecido

Obs.: No post anterior, pulei dois anos de história. Esse post é de quando deixamos St. Martin, no início de 1991.

A ponte nos levou ao desconhecido, com destino a ilha de Faial, nos Açores. 
A bordo do Malaika, cujo nome do capitão eu providencial e obviamente me esqueci, seguimos pelo Triângulo das Bermudas, e pelo Mar de Sargaço, uma imensidão de água coberta de algas marrons, de peixes voadores que insistem em se suicidar pulando no barco, e de um magnetismo bizarro que confunde instrumentos. Com a fama do lugar, e a demora de avanço causada pelas algas, o capitão alemão já não estava lá muito satisfeito. 
Depois daquele trecho de algas vem outro trecho onde surgem grandes caravelas - milhares de águas-vivas, de enorme toxicidade, com uma parte externa que lembra uma vela, de cor gritante, que vai do roxo ao rosa-choque. Tanto que, em inglês, elas são chamadas de "homens portugueses de guerra", pela agressividade ao toque.  
Lá pelas tantas, quando o comandante soube, pelo weatherfax, da aproximação de uma boa depressão, com 980 milibares no centro, e pelo barômetro, que depencava vertiginosamente, o homem resolveu mudar o rumo para o leste, o que não adiantou nada: fomos pegos em cheio pela tempestade.
O mar ali tinha ondas médias, inchadas, que quebravam; o céu e o mar se confundiam e engoliam o horizonte, e tudo ficou de uma cor cinza-amarronzada. Prendemos o timão, entramos na coberta e mantivemos a estabilidade só com uma storm sail e a grande bem reduzida. 
Pensei: o que mais fazer num tempo daqueles? Esperar, e fazer biscoitos. 
A tripulação adorou, e caiu dentro, mas o capitão achou inapropriado para o momento, e jogou os biscoitos que esperavam no lixo. 
As pessoas se transformam no mar. Os defeitos não têm para onde ir: ficam ali, patentes. Quem tem medo da natureza não deve navegar. Lá, vemos como somos pequenos, frágeis... e no entanto, eu e os outros percebíamos o positivo: merecemos estar vivos! 
É preciso ter humildade de caráter para viver no mar.
O mau tempo passou após 3 dias - sem mais biscoitos. Chegamos a ilha de Faial num encantamento tremendo por aquelas ilhas lindíssimas plantadas no meio do oceano e com um mal-estar horrendo com aquele homem descontroladamente furioso. Pobre ele, que não sabia da grande solidariedade existente entre povos que falam português. 
A aduana foi imediatamente avisada da situação. Pela lei Internacional, no mar, o capitão é responsável pelo barco e pela tripulação. Ou seja: não é possível abandoná-la em qualquer canto, a sua própria sorte. Ele é obrigado a pagar custos de repatriamento, se quiser se livrar da tripulação. Assim, o homem encontrou um bar onde se afundou pelo tempo em que ali estivemos.
O arquipélago dos Açores, localizado na Macaronésia, é composto de 9 ilhas de paisagens variadas: a maioria é coberta de vastos campos, que lembram a Escócia, com montes e montanhas onde pastam ovelhas e vacas, e onde vive tranquilamente um povo muito acolhedor, em belas cidadelas pitorescas. É um lugar de muitas, muitas histórias de mar. Não daria para contar em um blog inteiro.
A grande natureza pura, límpida, e familiar: um lugar que vale muito a pena conhecer melhor, o que certamente farei antes de partir de vez.


Physalia physalis
Mau tempo no Mar

Mapa do Mar de Sargassos

Costa Leste da Ilha de São Jorge, Açores



12 de novembro de 2011

Mimos

Após o furacão pulamos a bordo de um outro maxi chamado Donnybrook, conduzido por Bert Collins, que também tinha uma Harley Davidson (mas não a bordo) e zipamos até Tortola, ao norte, nas Ilhas Virgens. Era abril de 1993.
Paul encontrou um trabalho bacana a bordo de um barco que pertencia a uma grande produtora de whisky, e eu naveguei em direção a indústria cinematográfica. 
O proprietário do meu barco - o Danúbio - tinha uma fábrica de poltronas de cinema e estava prestes a receber cinco visitas que eram grandes clientes, proprietários de uma vasta rede de cinemas dos EUA.
Assim surgiu aquela familia - que eu deveria mimar, como hostess. O pai era um GRANDE senhor, muito generoso, com um belo apetite por toda a boa comida possível e imaginária. Ele veio acompanhado da namorada, uma renomada designer de tecidos. Ela só precisava se sentir inspirada pelo coral e pelos peixes para produzir belas estampas - sem jamais entrar na água, é claro.
E o preocupado casal de filhos também veio. Ambos, a sua vez, enfatizaram a proibição de fornecer qualquer coisa gordurosa ao pai, o que era compreensível. Só que o cara não concordava com esse ponto de vista, e me subornou com elogios quando preparei uma lagosta.
Então eu fiz pra ele - escondido - um pudim de pão cheio de creme.
Ele gostou, como comprovou a minha gorjeta ao final do serviço.
Caramba. Eu não era enfermeira - era barcomoça. O "senhorzinho" era um homem de negócios do entretenimento, estávamos em Tortolla, e a vida é curta demais para não ser vivida.
Não sei se estou certa ou errada. Mas amo ver as pessoas aproveitando a vida. É minha natureza.  

2 de novembro de 2011

As Pontes

Saint Marteen é muito louca. Uma ilha de 87 quilômetros quadrados que é dois países num só, divididos por uma ponte que levanta - pra cá é França, pra lá é Holanda, com língua e tudo.
Além disso, a ilha é um daqueles lugares únicos que têm abrigo natural contra furacões, e por isso, a cada ano por volta do mês de agosto, milhares de veleiros vão para lá procurando não sofrer com os ventos impiedosos que assolam o Caribe.
Não é maravilhoso saber que existe um lugar que nos abriga do tempo ruim? 
Enfim. Tudo o que eu mais amo: o mundo numa casca de noz, mar, vento e paz, e amigos. Essa é uma natureza realmente abundante...  

23 de outubro de 2011

Viajando

Granada é uma ilha caribenha especialmente bonita. Se não fosse uma base militar americana, recomendaria a todos que conhecessem. 
Lá constatamos que a noz-moscada é um de seus principais produtos. Dela se retira o macis, uma membrana avermelhada que o recobre, também utilizada como especiaria, mas com outro sabor e aroma. Soubemos também que consumir uma noz-moscada inteira (ou 5 g do seu pó) pode produzir efeitos de intoxicação como descontrole motor, e alucinações auditivas e visuais, por conter miristicina, um inibidor irreversível da monoamina oxidase, uma enzima que metaboliza hormônios como noradrenalina, dopamina e serotonina, que atuam ativando o estado de alerta, e regulando os estados de humor, como a euforia e a depressão. 
Lá conhecemos o capitão de um rebocador que nos ofereceu uma quantia vultuosa para trabalharmos a bordo, em regime (totalmente) integral. O homem era o cara do Kojak, e vinha de Bornéu também! Declinamos... porque era preciso seguir em frente. 
Nossa participação no Act IV finalizou em Puerto La Cruz, na Venezuela, mais uma vez.
Foi assim que surgiu Iemanjá, um catamarã de 42 pés, projeto único, capitaneado por Avi, que nos embalou em seus braços e conduziu da vida insana até Saint Marteen.



21 de outubro de 2011

O Mundo dos Negócios

Logo que chegamos a Palma de Majorca conseguimos trabalho a bordo de um barco de 114 pés construído no Canadá, batizado de "Act IV".
O novo proprietário não era bobo nem nada: resolveu fazer a transação da compra fora das águas territoriais espanholas, para não ter que pagar as taxas.
Aquele homem extraordinário também pegou o lote inteiro de armas (leves e pesadas) que foram vendidas com o barco, por seu antigo proprietário árabe, e simplemente as jogou bora afora no fundo do porto. Seria interessante se eu tivesse cronometrado a rapidez com que apareceram mergulhadores naquele lugar.
Aquele exagero de embarcação tinha um piano e uma jacuzzi a bordo, dois gigantescos geradores Caterpillar e as catracas eram elétricas. Isso significa que na viagem entre Majorca, Las Palmas de Gran Canaria, Antigua e Granada, pude contar nos dedos as vezes que vi as velas içadas. Não éramos muito felizes ali.
Nosso capitão era um americano parecido com George Bush, com cara de frustrado. Já o  chefe, era um pequeno homem, que nos pagava o salário nota por nota, dizendo uma frase famosa, título de uma canção do Elvis, assim traduzida: "O que vem fácil, vai fácil"...  
E, típico desse mundo dos negócios: meu salário era igual ao do Paul dividido por dois, porque "você é mulher", especialmente considerando que eu era a única que mantinha aquele barco inteiro limpo, e as pessoas, alimentadas.
Essa é a natureza de alguns. Essa gente fez o mundo girar até agora, tornando o mundo o que é. Um mundo onde muitos vão morrer no próximo minuto, e onde alguns poucos poderiam evitar toda essa tragédia com um gesto humano no bolso. O juízo disso é todo seu.

 

15 de outubro de 2011

O Estreito

Mesmo com uma natureza de raízes, há gente que não sossega - tem bicho carpinteiro. Então, nada de ficar na terra-pai, Portugal: sempre em frente.
Em locais com montanhas marcantes, como o Cabo e o Estreito de Gibraltar, ambos habitados por babuínos, a natureza é selvagem, fala muito forte. Nesses cabos, estreitos e istmos milenares, a história está no ar. O Cabo da Boa Esperança divide o Oceano Atlântico do Índico. O Cabo Horn marca as terras austrais, e separa o Atlântico do Pacífico. Em Gibraltar, vê-se a África da Europa, a olho nu. Quando estiver num lugar assim, respire e sinta o cheiro daquele ponto estratégico, e belo, um genuíno divisor de águas. É uma forma de apreciar a natureza.
Assim fomos até Cadiz, onde vi que na Espanha, as pessoas - crianças, idosos e jovens - amanhecem à noite. 
Ali desembarcamos do Álibi e entramos a bordo de um barco de bandeira francesa por dois dias. Dentre os tripulantes havia um casal de franceses com um bebê de 6 meses. O menino acordava rindo. A mãe era médica, mas também mochileira. No barco, passeavam com ele para cima e para baixo, sustentado por um cinto. Quando os famosos golfinhos de Gibraltar vieram brincar na proa, o menino ria sem parar: parecia entender os sons deles. Os golfinhos também sorriam. Eu vi.
Incrível, extraordinária, imensa natureza, essa, que nos oferece a dádiva de interagir com golfinhos - o único animal, além do homem, que brinca quando adulto. 
E, com essa forte impressão, cheguei a Majorca.


11 de outubro de 2011

Voltando às raízes

E assim seguia o círculo dos ventos, mais uma vez: Rio, Cape Town, Paris, Vinay... porém, por termos a opção da escolha, mudamos o nosso destino: para a Bélgica. Sim, a Bélgica das 365 cervejas artesanais, e dos quadrinhos mais famosos do planeta - mas não para a Bruxelas dos manons e das ruas cheirando a chocolate, ou a idílica Bruges, e sim, para Niewpoort aan Zee. E só há uma coisa a se ver, lá: o Mar do Norte, com barcos, muitos barcos.
O Mar marrom do Norte impõe respeito. A bordo do Alibi, um Jeanneau Melody, junto ao proprietário Jacques Quesnoit, fomos parar na Bretanha. Não é lenda: aquele nevoeiro dá para cortar com uma faca. Por um dia inteiro, não avistamos sequer a proa do veleiro de 10 metros e meio. Como não tínhamos radar, nem GPS, nem olho, contamos com o faro. Mas ele nos traiu. Uma vez tivemos que cambar na euforia, depois de avistarmos ondas na praia, e constatarmos que o capitão havia errado o cálculo do rumo em 180 graus. Em outra, ouvimos uma ENORME buzina, de um navio que nunca apareceu, que parecia vir da porta do além. Ainda bem. Meu coração, ejetado na língua, foi devolvido ao seu lugar só porque engoli seco. 
Paramos na lindíssima Brest, terra de maré de 5 metros, representante da Bretanha da resistência, a terra prometida dos celtas, onde se pode degustar ostras impressionantes.
Por Tutatis e por Belenos. Aquilo era a própria Grande Travessia de Uderzo e Goscinny.

E para terminar o círculo, voltamos a Portugal, a terra pai. Em águas patrícias, pescamos um tubarão que parecia afogado pelo currico. Com muita cautela, removemos os dois anzóis presos a sua boca e o devolvemos ao mar.
Pois é ali que devem permanecer suas criaturas: em sua natureza.

7 de outubro de 2011

Em círculos

Janeiro de 89. A bordo do Jarushke, um barco de 53 pés construído na África do Sul, fizemos a rota Natal-Vitoria-Rio-Cape Town com o capitão Zeca Martino, como se fizéssemos círculos. A bordo, aprendemos a criar brotos, fizemos pão fresco, ouvimos muita música e interagimos. Foi uma travessia maravilhosa.
No entanto, na primeira perna da viagem, o barco quase afundou porque havia um grande furo no compatimento da âncora. Ficamos bem estressados (e enjoados) com aquele bombeamento intenso - bombas elétricas falham SIM - mas ao final foi tudo resolvido: o Zeca mergulhou, encontrou o furo e o tapou. O quadrante do leme também rachou no meio do Atlântico, o que tornou a cana do leme bem pesada. Éramos 3, e eu rapidamente me cansei dos quartos longos. Mas porque tínhamos ventos estáveis de popa, o Zeca simplesmente apareceu com sua revolucionária invenção, chamada de "piloto automático", a qual consiste em um elástico preso a um lado da cana, e a escota da genoa bem ajustada, presa ao outro lado da cana, e nós 3 arriscamos e nos demos duas noites de sono muito bem merecido. 
Também tivemos uma interação fantástica com uns pássaros que chamávamos de  "bailarinas", porque pareciam dançar no topo das ondas, e nos seguiam o tempo todo. Os albatrozes de sobrancelha também. Dizemos que eles são as almas dos marinheiros que perderam a vida no mar.
Os Albatrozes são impressionantes, porque têm a maior envergadura de asas existente entre os pássaros, chegando a 3,5 metros. Seus bicos são fortíssimos. Essas criaturas levam muito tempo para amadurecer sexualmente, e mantêm uma única relação monogâmica por toda a vida. Os Albatrozes retornam muitas vezes a sua colônia original para procriar, e fazem seus ninhos em ilhas isoladas sem histórico prévio da presença de mamíferos. Eles cuidam muito bem e por muito tempo de seu ovo - põem um por estação reprodutiva - e seus filhotes crescem até um ano para arriscarem o primeiro vôo. Albatrozes voam por enormes distâncias - às vezes circumpolares - pois eles conseguem planar facilmente, sem gastar muita energia. Eles vivem até 50 anos.
Das 21 espécies conhecidas pelo homem, 19 estão em extinção.
Hoje, o Zeca faz charter entre Natal e Fernando de Noronha no seu Borandá.


5 de outubro de 2011

Amazônia

Pois fomos sendo parados pelos militares venezuelanos até a fronteira do Brasil, que fica no meio de um nada, muito longe de qualquer coisa que possa ser chamado civilizado. Na Amazônia, a natureza é selvagem. Mas a dos homens de lá, é feroz.
Boavista é uma cidade com arquitetura pontuada de vendinhas de compra e venda de ouro, bancos nacionais e internacionais de vidro bem fumê, e casas amplas com milhares de mangas e cajus caídos no chão. De posse das informações básicas, nós enxeridos tentamos extrair castanha da noz do caju, e acabamos sem voz, com as mãos descascando. O óleo que envolve a noz possui urushiol, toxina muito potente. Seu líquido é usado para fins industriais, para produzir inseticidas, resinas, lonas de freios, etc. Ui!
De carona, continuamos rumo ao sul, objetivo Natal ou Recife. Numa das caronas entramos na boléia de um 4 X 4 cheio de cajus, e nossas roupas ganharam a curiosíssima mancha da nódoa, que some na estressafra, e reaparece na época.  Também fomos avisados por um indígena para não urinarmos nos rios, por mais rasos que possam ser, pois naqueles em que não há piranhas, é provável entrar em contato com candirus. (Ui! Ui!) (Se você não sabe o que é, veja o link abaixo). Depois de umas 5 horas de boléia por aquelas estradas irregulares, meus órgãos pareciam ter trocado de lugar ao sair do carro. Pernoitamos na pousada mais a ermo em que já estive, mas a abandonamos por não sabermos como lidar com tantas baratas. Uuuuuuuuuuui...
A paisagem mais marcante da Amazônia, vista a nível do solo, não é da mata: é a dos descampados - vastas áreas queimadas, onde o povo cria gado, e onde só restaram, aqui e ali, as castanheiras do Pará, majestosíssimas.
Na fronteira da terra dos Ianomanis, os ônibus com as suspensões mais reforçadas do planeta paravam as 6 da tarde e esperavam até as 6 da manhã.  Na estrada que passa pelo território, por conta dos atoleiros, só se vence alguns trechos com a ajuda do trator. 
Depois de quilômetros abundantes, chegamos a Manaus, a capital do sorvete de fruta, do peixe de rio e do mosquito. Quem vai a Manaus não pode ser chato. Mas a Amazônia tem mesmo que ser assim: desconcertante. É sua natureza.

4 de outubro de 2011

Rumo ao Sul

Pegando carona em barco no Caribe, não dava para escolher. Pois bem: rumamos ao sul, a bordo de um veleiro finlandês de ferrocemento, de 63 pés, chamado "Claudia II". Foram 5 dias até a Venezuela, em Puerto La Cruz. Lá ficamos trabalhando e vivendo a bordo de um veleiro no seco, e conhecendo aquela terra curiosa. 
Paul subia os coqueiros feito macaco. Desenvolvemos uma técnica em que ele jogava os cocos e eu amortecia a queda, para evitar que quebrassem. Não sei como ainda estou viva. Ali tinha os melhores falafels de carrocinha que eu já comi. Na praça central da cidade vivia um bicho preguiça.
As venezuelanas de origem européia herdaram a elegância das espanholas, com um toque exótico das sul americanas. Os homens não tiveram a mesma sorte, infelizmente. Pessoas de aparência indígena são a maioria. O melhor cabelereiro em que já cortei cabelo na minha vida tinha as paredes de seu cafofo cobertas de diplomas internacionais e sequer tinha uma pia, só uma cadeira. As pessoas faziam fila de pé, mesmo, porque ele cortava os cabelos com o gestual de um Picasso, em aproximadamente 10 minutos. Genial.
Ah, a Venezuela também tinha algo mais: militares para todos os lados. E inquisitivos. Era uma sensação de que algo acontecia, que não sabíamos. Então pensamos, que diacho, voltemos ao Brasil. 

3 de outubro de 2011

Ajuste Fino à Distância

Velejamos até chegar à ilha de Saint Lucia, mas, na dúvida sobre a visita ao vulcão Soufriére, nada de desembarque: seguimos em frente até a Martinica para uma noite gourmet em um restaurante finíssimo ao longo do cais - camarões e ostras - tudo pago, é claro, pelo nosso generoso dono do barco.
Na Martinica as baguettes vêm importadas por avião de Paris... é a verdadeira decadence avec ellegance.
Saímos do jantar, mais para lá do que para cá, e avisto ao longe um cara cambaleante que entra num bote e rema até chegar a outro barco. Apesar de estar escuro e longe, eu corro. Com certeza era o Paul.
Esperei, sem dormir, até o dia seguinte, para pegar o bote do Blue Finn, e remar até o veleiro. Quando perguntei se tinham algum tripulante Neo-Zeolandês, o rapaz disse "Sim," mas "ele está naquele veleirinho lá".
Remei feito uma doida com o coração na boca. Lá estava ele a bordo de um mínimo barco de dois amigos que havíamos conhecido em Recife. A Fabiola me viu e disse: "Mira, es Daniela!"
Paul não acreditou. Nem eu. E nem é preciso fazer um comentário romântico.
Acabamos ficando os dois na Martinica e embarcando para o sul. Era janeiro de 1989.
Realmente é maravilhoso poder compreender as coisas, mas o desconhecido e o inesperado são enormes forças propulsoras da vida. Entender tudo não faz parte da natureza humana.

1 de outubro de 2011

Zazen

Tudo tem um lado positivo. Até estar na companhia de bebuns.
Consegui um trabalho num bar em Careenage, lavando copos. O bar tinha uma mesa de sinuca e era frequentado principalmente por velejadores. Tinha também um mural onde prontamente coloquei meu aviso com minhas intenções - seguir rumo ao norte.

Nem sempre era engraçado esperar toda noite os últimos clientes saírem para conseguir um espaço debaixo da mesa de sinuca para dormir. O bar também tinha uns apartamentos de aluguel no segundo andar, então, umas duas ou três vezes escalei o muro e entrei pela janela para me presentear com uma noite decete de sono.
Conheci um doce de rapaz da Bavária que me deu o apoio emocional que eu precisava. Ele estava hospedado em um local no interior da ilha, mas não era um viajante. Por isso não aceitei seu convite para ir para a Bavária, mas ainda penso nele como um anjo.
Outra pessoa importante que conheci foi Anderson Agra - o capitão a bordo do Blue Finn of Hamble, um fantástico veleiro inglês de 60 pés, tripulado apenas por seu proprietário rico, dono de empresas de silicone, que era casado com uma lady da família real espanhola, que não gostava muito de velejar. Mas os dois gostavam bastante de beber. 
Anderson é um cara muito positivo - sempre cantando, sempre para cima. Eles concordaram em me levar para o norte e isso mudou muito o meu fraco ponto de vista sobre o Caribe.
O Anderson ainda vive velejando pelo mundo no seu veleiro Vancouver de 37 pés chamado Zazen. É perfeito para ele. Ele é um daqueles caras que colorem o mundo com sua alegria. Obrigado por estar no mundo Majjham. 


30 de setembro de 2011

Ingleses e rastafaris

Caribe = glamour, paz, beleza, riqueza. Certo?
Errado.
Cheguei lá com nada mais que 50 dólares e meu lindo canivete marítimo. A primeira pessoa que conheci foi um rastafari, que me levou a uma pensão bem simples, mas mesmo assim, cobrou caro demais. Pobre homem simpático e solícito: se esperava obter alguma vantagem financeira da mocinha de aparência européia, acabou comprando meu canivete, penalizado.
Não dá para ignorar a história daquelas ilhas: seu povo original, os índios caribes, foram completamente dizimados na chegada dos europeus. Depois, foram substituídos por escravos, cujos descendentes permanecem ali desenvolvendo uma cultura razoavelmente oprimida. 
As casas de madeira construídas para voar sem causar grandes estragos, diante dos furacões que assolam as ilhas a cada ano, insistem em lembrar aquela gente o quão dura é a vida. 
Isso, ao lado de iates milionários... é constrangedor. E muito familiar, para uma brasileira.
No dia seguinte, fui ao porto em Bridgetown ver se embarcava em outro veleiro. Quando contei minha nacionalidade para os jovens ingleses ricos, a resposta foi: "você sabe fazer caipirinha?????" 
Portanto, graças a minha habilidade nessa arte, troquei um lugar a bordo para dormir e comer, por 3 dias, pelos drinques preparados em proporção de balde. O pilão era a manicaca. E a cachaça, o famoso rum de Barbados.
Esse meu povo viajante dos portos tem uma natureza da água: da doce, da salgada e a daquela que passarinho não bebe. 


17 de setembro de 2011

Paralipse

Largar não é fácil para a minha natureza. Naquele momento em que o barco partia, deixando Las Palmas cada vez menor, meu olhar ao largo, duvidando rever a ele novamente algum dia, o capitão me toca no ombro, e diz, em inglês com sotaque carregado em alemão: "não se preocupe, nunca mais você vai ver aquele cara".
A primeira imagem que veio a minha cabeça era eu me jogando no mar, e como meu passaporte ficaria encharcado.
Mas eu não me joguei. Assim começou o mês mais difícil da minha vida.
No início tentei ignorar a coisa e cozinhar. O porco com chucrute e puré de batata me davam enjoo. Todos eram comida pronta, junto a salada de frutas, que saía de uma lata. Nem preciso dizer que fiquei bem magrinha.
O barco tinha um radio amador. O capitão conversava todo dia as 5 com sua esposa, e naquele momento eu havia sido proibida de falar: "ela é muito ciumenta". Eu começava a achar que o cara era tantan, mas ainda tinha muito mar pela frente. No terceiro dia ele me pediu para cortar o cabelo dele, no banheiro. Quando eu lá cheguei com a tesoura na mão, ele estava nu.
Acho que pessoas que cometem abusos não sabem o risco que correm, porque ignoram que podem estar diante de alguém com muita raiva.
Mas eu não reagi. Simplesmente ignorei e cortei o cabelo dele. Após beber algumas caixas de vinho, o capitão me chamou e disse que eu deveria dormir no quarto dele, daquele dia em diante. Foi simples, aquele "não". Então ele me disse, está bem, vai dormir lá fora. E eu obedeci.
O capitão começou a beber mais e mais a cada dia. Isso tornava as coisas mais fáceis, porque tudo o que tínhamos que fazer era levar o barco no rumo, ser nós mesmos e ignorá-lo. Quando ele caia no chão de tão bêbado, os Berlinenses o levavam a cama e já esperávamos que ele acordaria dois dias depois esbravejando.
Apesar de os Berlinenses não falarem uma palavra de inglês eu conseguia me relacionar com eles. A me ver entrando num saco de lixo preto a cada noite e tremer de frio, eles me ofereceram para dormir na cama deles, enquanto estavam fazendo seus quartos. Eles salvaram minha vida e minha saúde.
Em um desses ataques tipo retorno de Jedi, o capitão surgiu lá fora com uma arma. Os Berlinenses imediatamente trataram de dissuadi-lo a guardá-la. No dia seguinte, o cara me aparece na proa, para "fazer as pazes". Estava bêbado novamente, e oscilava, segurando nos guarda-mancebos. Lembro de ter que fazer um esforço feroz para não empurrá-lo.
Sim, agora sei que isso também faz parte da minha natureza.
Foi o mais perto que cheguei de matar alguém na minha vida.
Dessa forma, numa bela manhã daquela viagem de 28 dias, vi Barbados aparecer na proa. Imediatamente desci, arrumei minha mala e me despedi dos berlinenses. Enquanto eles lidavam com as amarras pulei do Caroline e nunca mais olhei para trás. Era novembro de 1988. Felicíssima de estar no Caribe.

15 de setembro de 2011

Terra Seca

Las Palmas de Gran Canaria, uma ilha inteira de ar seco e pacotes turísticos. 
A regata que cruzaria o Atlântico partiria em duas semanas após a nossa chegada. A maioria dos tripulantes já tinha encontrado o seu lugar e em todos os cantos do cais, ninguém se dispunha a levar um tripulante - que o diga dois!
Cabe explicar que essa regata é só uma desculpa para os europeus donos de barcos fazerem a mesma viagem aproveitando os ventos alíseos. Ela não envolve competição alguma.
Após vários dias de tanto caminhar e perguntar, conhecemos um cara que aceitou levar um de nós. O barco tinha sido construído em Hamburgo pelas próprias mãos do proprietário-capitão, de Frankfurt.
O Paul preferiu ficar e me embarcar. Mais tarde, vi que era a decisão mais correta, pois ele só conseguiu partir um mês depois.
Eu tinha acabado de fazer 22.
Celulares não existiam. Tampouco tínhamos endereço fixo. Estávamos ao sabor da sorte, e provavelmente nunca mais nos veríamos.
O capitão alemão já tinha dois tripulantes a bordo, de Berlim. Naquela época ainda existia o Muro. Ele explicou num inglês rude que desejava que eu cozinhasse. Boa, pensei. Ele nos deixou dormir a bordo, e achamos aquele gesto bastante amigável.
Uns dias antes de partir, o capitão me levou ao El Corte Ingles para abastecer o barco para a viagem de um mês. Voltamos com dois carrinhos cheios de latas e batatas, e outros dois repletos de vinho de caixa.
Lembro de ter ficado bastante espantada com aquilo, mas poxa, pensei, é a natureza europeia.
Foi assim que parti de Las Palmas de Gran Canaria, a bordo do Caroline, indo para Barbados.

14 de setembro de 2011

Champagne, Sexo e o Desejo de Voar

Passar os dias colhendo uvas meunier, pinot noir e chardonay para produzir champagne, com uma gente saída de um filme do Fellini, regada a muito vinho e sexo, sinceramente, me dá saudade.
Os franceses daquela parte começam o dia no bar, tomando algo diferente - um anis, ou um calvados. As 8:00 já estávamos nos vinhedos, sem café da manhã. Fazia fresco - de 10 a 15 graus. As uvas crescem baixo, pra se beneficiarem do calor irradiado do chão de calcáreo batido. Então, o dia inteiro de trabalho passa-se em posiçao recurvada ou de cócoras. O inferno/paraíso dos fisioterapeutas! Tudo a toque de caixa, porque para produzir aquele néctar, há um tempo definido pelos burocratas de Paris, a ser seguido rigorosamente. As 10 da manhã faz-se um break no meio dos vinhedos e, do nada, surge o vinho (café? chá? eca!) e algumas patisseries, algum pão, alguma fruta. O trabalho recomeça e vai até o meio dia, quando voltamos, verdes de fome, e somos muito bem servidos de entrada, carne, verdura, queijo e sobremesa, tudo regado a champagne. No final, só nos resta tirar aquela sonequinha tudo de bom. Duas horas de almoço! Gente, amo a civilização.
Quer trabalho melhor na vida? Não existe.
De tarde, tudo de novo outra vez.

Aparecia de tudo naquela terra: franceses e italianos duros, gente dos países do leste - até brasileira tinha. Um grupo foi impossível de esquecer - os polacos. Da última vez que vi, lá chegaram num BMW cor de abóbora levando litros de vodka e pickles, lápides de cemitério e uma cabeça de alce empalhada, só pra fazer uma graninha extra... e, mais espantoso ainda, eles de fato fizeram! Eclética, a combinação genética: pai gigante, mãe metida a francesa, filho manhoso, filha bonequinha, genro casca grossa - aliás, é dele a receita em anexo - todos num quarto tocando o rebu e bebendo sem parar.
E no dia seguinte... eram eles que davam mais duro e trabalhavam mais rápido. 

E como tudo o que é bom tem um fim - o outono e a vindange também... fomos pra Bélgica, e de lá, pra Holanda... e de lá, para as Ilhas Canárias.
Porque navegar é preciso, mas viver... não é preciso.



7 de setembro de 2011

No dedo

A partir de Lisboa, meu objetivo era chegar a Vinay, uma vila a 100 km a leste de Paris. Lá, estava o Paul, e a perspectiva de trabalhar colhendo uvas em Champagne. A meu favor tinha 500 dólares, juventude e muita cara de pau. 
Naquela época a França exigia visto e, na embaixada, o seco atendente deixou bastante claro que sem passagem de ida e volta, dinheiro e endereço de hotel nada iria acontecer. Sentei naquela pracinha ao lado da embaixada pensando e agora, meu Deus, como ia fazer. Foi quando vi nosso simpático amigo saindo para almoçar.
A sorte tem formas misteriosas de agir.
Depois de alguns dias em que vendi artesanato indígena na Praia de Cascais, fui assediada por um finlandês louco, e fiz amizade com o filho de um diplomata brasileiro, voltei a embaixada (na hora do almoço) levando documentos que comprovavam que eu iria à França de carro. E aquela simpática senhora me concedeu o visto.
Então, mochila nas costas, fui à rodovia que ia em direção ao Leste pedir carona.
O primeiro carro que parou foi uma Masseratti. O executivo ia para Madrid. Ávido de  companhia, o homem ia prolixamente contando toda a história da Espanha ao vivo e a cores, e parava aqui e lá para tomar um café e um cognac. Eu estava tão feliz com aquela aula de história em espanhol, que o cara desviou do caminho da E-80 para me mostrar Salamanca, Ávila e o Valle de Los Caídos, o impressionante túmulo de Franco, encravado numa montanha e cercado de estátuas gigantescas de anjos com expressão de demônio. 
No dia seguinte, saí de Madrid e fui para a gasolinera - na Espanha ninguém para para dar carona na estrada. Um homem num carrinho velho viu minha placa e me chamou. Era marroquino. Olhei para a cara dele e decidi entrar. Na estrada, o homem ia falando, e eu pontuando o discurso com "ã-hãs", "ouís" e "mercis" esporádicos. Pelo que pude entender, o homem voltava do casamento da filha no Marrocos - com o carro abarrotado de tralhas. O senhor dirigia sem parar, e de quando em quando, pedia um copo café, tirado de uma grande garrafa térmica. Era outono na Europa e as paisagens estavam fascinantes. A estrada toda pintada de tons de amarelo, vermelho e laranja. Fui de Madrid a Paris assim, sem entender patavinas do que disse aquele homem. Quando lá chegamos, ele parou num posto de gasolina. Minha cara deve ter dado pena - pois ele resolveu me levar até o meu destino, que fica a uma hora de Paris! 
Nunca seria capaz de agradecer o suficiente a aqueles homens: se eu tinha qualquer medo de pegar carona então, o perdi naquela viagem. Mesmo com cultura, credo e linguagem diferentes, tive a enorme sorte de me deparar com dois cavalheiros. 
Anos após esse episódio, no meio da neve na Alemanha, um casal parou e perguntou se eu não tinha medo de pedir carona sozinha. Honestamente, eu disse que sim, mas que eles corriam o mesmo risco que eu. Sinceramente, burra: me deixaram no meio da estrada logo depois.
Ao chegar em Vinay, uma pequena cidade composta por uma igreja e três ruas em volta dela, procurei a maison onde o Paul estaria. Quando cheguei ele estava no pátio. Dou graças à articulação temporomandibular, porque sem ela o queixo dele teria se espatifado no chão.

5 de setembro de 2011

E La Nave Va

Desembarcando, encaramos uma escada. Desafio - após vários dias de mar anda-se em ziguezague, sem bebida: é o famoso andar de marinheiro. Ou seja: todos caímos.
Fiquei quase um mês na hospitaleira casa do Dr. Scher, pai do Paul, em Claremont. 
Vi pela televisão o Mandela sendo solto do longo tempo na prisão, e o povo emocionado. O apartheid tinha bancos com placas para negros e brancos, tarifa diferenciada nos ônibus, e um olhar incrivelmente constrangedor, de tão submisso, dos mulatos aos falar conosco. E favelas enormes, muito miseráveis.
Fiz amizade com uma menina indiana que vendia roupas no mercado. Ela me ensinou a fazer samoosas e me deu a dica de como sair de lá. Isso era importante, pois eu tinha 500 dólares. Paul planejava voar para a França para fazer a colheita das uvas em Champagne. 
Assim, embarquei "de gaiata num navio" de tripulação Birmanesa, indo para Lisboa, junto a um casal de idosos Escoceses, um Alemão, e um casal de jovens sul-africanos. Trabalhamos fazendo vários serviços - descascar batata, pintar porão, etc, em troca da viagem. Até que, anos depois, essa troca teve que ser encerrada pela "esperteza" de um idiota que resolveu tentar contrabandear marfim por aquela via.
Aqueles birmaneses eram quase todos budistas, criaturas pacíficas que andavam com um tipo de sarong, o longyi, que leva um nó caso seja usado por homens, e outro para ser usado por mulheres. Ganhei um verde quadriculado, que usei muitos anos. Fui muito bem tratada por todos, com a breve exceção do cozinheiro - um muçulmano que tentou me agarrar dentro do frigorífico, quando eu procurava massa folhada para fazer samoosas. O assédio tragicômico não teve maiores consequências: ele rapidamente implorou que eu não dissesse nada ao capitão.
Fora esse episódio, foram 12 dias bem tranquilos até chegarmos em Portugal.
Aportando em Lisboa, ao lado da foz do rio Tejo, olhava para aquela terra e não dava pra disfarçar a emoção... e enquanto meus olhos retinham aquela lágrima teimosa o estivador ajudava a atracar o navio, lançando a retinida com um nó em forma de bola na ponta...
E, é claro, o nó-bola bateu na minha testa. Caí pra trás e a tripulação correu, assustada.
Eu ria, e pensava: "Bem vinda à Europa".

O Sol na África é Gigante

Para ser nômade, não basta viajar. É preciso mudar o olhar quanto ao tempo, ao espaço e as pessoas, e querer menos, amar o vazio criativo.
E o meio do oceano é lugar perfeito pra viver o vazio. A comida é racionada. A higiene é restrita, pois há pouca água doce. Dorme-se bastante entre os quartos. A harmonia é fundamental para a saúde de todos. As velas te levam ao sabor do vento, relativizando o tempo: se há pouco vento, anda-se pouco, ou nada. Simples assim.
No meio do caminho tivemos um problema no motor e o cabeçote rachou. Ou seja, nada de máquina para entrar em Cape Town. E só. Sem problemas! Num veleiro, o motor é apenas um acessório que facilita a manobrabilidade em espaços pequenos - não faz falta alguma. Pelo contrário... acaba com o silêncio. Mas sem poder prever o tempo que ia levar, tivemos que racionar comida e água. Eu recebi uma quota extra de água para higiene pessoal.
A viagem para Cape Town, partindo do Rio, é uma das mais belas, pois em baixas latitudes há muita vida marinha, e pouca gente. Sábia natureza. Chama-se "40 rugidores" a faixa onde os ventos se intensificam. Naquele lugar, especialmente timoneando a noite, só, vejo que o barco é uma casca de noz e que eu sou um pedacinho de quase nada. Uma sensação incrivelmente libertadora. 
Num belo quarto noturno de lua bem nova, comoção: avisto um clarão à nossa proa - Table Mountain iluminada à noite. Ou seja, aproximadamente 100 milhas náuticas de Cape Town. Mas o vento era de uns 15 nós - bem fraquinho, então, ainda levamos dois dias, até chegarmos. No meio do caminho começamos a pegar vagas de 4 a 5 metros de altura, bem lisas, que nos traziam duas emoções: esperança, quando o barco estava na crista, pois revelava a paisagem ao largo, e medo, quando o barco descia à base.
Cape Town é uma cidade imperdível para quem gosta de natureza. Fomos alegremente recebidos por focas brincalhonas e leões marinhos. 
Era uma amostra da força da natureza do Cabo da Boa Esperança (ou Cabo Agulhas) - selvagem, poderosa. Quem vê o Sol da África sabe o que é isso. E há mais, muito mais: flores fortes feito alcachofras (a Protea), pêssegos deliciosos, areia movediça, babuínos, baleias, pinguins, tubarões... e os africanos.




4 de setembro de 2011

Nômade

Os dias em Recife são quentes, tão quentes que me causaram uma desidratação profunda, e convulsões, que só foram curadas pela mágica água de coco.
Naquele dia, porém, Recife lembrava suas origens holandesas: tempo chuvoso, quase frio, e uma névoa intensa cobria a entrada da barra de Recife - a foz do rio que desce das Reservas Ecológicas de Manassu, Mata de Mussaiba e Mata da Jangadinha. Brincando com os binóculos amarelos, vejo surgir um veleiro. Pensei que vinha de longe - ninguém sairia pra velejar num dia daqueles. Continuei olhando pelos binóculos. O proeiro viu o amarelo e acenou. Eu acenei de volta.
No dia seguinte, acordamos e vimos os gringos ancorados ao nosso lado. Remando, perguntaram se sabíamos onde vender whisky. Não sabíamos. Depois de alguns dias nos mudamos para o Iate Clube Cabanga, do outro lado da favela Brasília Teimosa, onde havia mais conforto.
Na espera, soube de um show em Campina Grande, na Paraíba, onde tocariam Chiclete com Banana, Gilberto Gil e Cateano. Convidei os gringos que também haviam se mudado para o nosso lado. Fomos todos, sem meu capitão, que não queria deixar o barco sozinho.
A casa de forró ficava no meio do nada e ao chegarmos, as minhocas da terra avistaram e cataram cada gringo com uma rapidez de Maria Bonita. Eu me divertia ao observar os caras totalmente sem jeito ao terem que encaixar as coxas nas coxas das meninas e rebolar. O americano era o mais fora de ritmo. Havia também um belga, um galês, um sul africano e o capitão, que era australiano.
Na volta, cantávamos no ônibus, eu e mais outros brasileiros alegres. Sob a música, algo aconteceu: surgiu um clima entre eu e Paul, o sul africano - o proeiro que me acenara na chegada. Aquilo durou alguns dias e teve consequências óbvias, mas, também, um desfecho inesperado. O fato é que ele me convidou a prosseguir com eles.
Assim, aos 21 anos, entrei para a tripulação do Berg Wind. Nosso destino era Cape Town, na África do Sul. Na rota para os mares do sul, partimos sob o comando de Robert Hossack em direção ao Rio, para depois baixarmos aos "40 rugidores".
O Miss Global foi para o Caribe mais tarde, com uma nova tripulante, a Fabiana.
E eu me tornei nômade. Desde então, sou cidadã do mundo.

Por isso, quero alimentá-lo.

3 de setembro de 2011

Os rumos

E estava cheia. Desde então aquele dia ficou no meu imaginário como uma das experiências mais emocionantes da minha vida.
Além disso via-se a fosforecência no krill que reflete a luz da lua nas ondas que o barco cria. É algo, no mínimo, belíssimo. Mágico. E navegar me cativou tanto que não paramos mais.
Depois de alguns meses trabalhando entre Angra e Búzios, para ganhar experiência, parti no Miss Global em direção ao Caribe. Na altura do Cabo de São Tomé encontramos com um peixe-lua e algumas jamantas que saltavam. Um pouco mais ao norte houve tempestade de raios.
E em Recife, permanecemos por uns meses, esperando uma vela voltar do Rio, cuja valuma havia rasgado. Culpa da minha inexperiência, que deixei a bicha muito tesa enquanto o vento deu uma aumentada.
Mas com o conforto de esperar em Recife, tudo mudou de novo... inclusive o rumo.
E devo confessar que isso também alimenta a minha natureza. 


 

Bioluminescência

Julho de 1987. Foi no "Miss Global", um 40 pés de regata, totalmente nu, equipado com rádio VHS, sextante, e painel solar, que experimentei, pela primeira vez, o que é a vida no mar. Nesse meio, há inúmeras crendices, mas uma grande verdade é: o mar não é ambiente que permite ficar em cima do muro. Ou você ama, ou não. Até porque sacode muito. E lembra a experiência uterina.
A primeira noite no mar foi de vigília. Meu capitão, muito experiente, me orientou quanto à bússola, me entregou o timão e avisou para ficar de olho em qualquer luz que se aproximasse. Era meu primeiro quarto. Atenção redobrada, olho no horizonte, o sol se pondo, eis que avisto uma luz vermelha. Meu coração batia forte. De repente ela foi ficando maior, e rápido. 
 Era a Lua.

Foi assim que parti

Minha natureza é extremamente volátil. Quando vivo algo muito injusto ou amoral, isso me insufla. Resultado: a tampa da cabeça quase sai. A pressão desses ares pode, certamente, fazer mal, mas como há dois lados para tudo, isso também me movimenta. E equilibra bastante um outro lado da minha natureza, que é gostar de conforto.
Foi assim que eu parti. Não dava mais aguentar tanta iniquidade no país. Eu tinha certeza que não teria chance de fazer a diferença após me formar (em Biologia). Estava errada  - 20 anos depois revi meus colegas que estão todos muito bem, obrigada, e fazendo a diferença. Mas também havia a iniquidade íntima, familiar. Isso acrescentou à vontade de buscar algo de novo, algo diferente. Mas quem criou a primeira fagulha foi minha irmã.
Um belo dia, lá estava no Alface's, e vem ela me dizer: "Daniela, você vai pra Europa." Caí na pilha e respondi, jocosa: "É? Como?". Daí, ela me disse ter um amigo que queria levar o veleiro pra Europa, e que procurava um tripulante. Na mesma hora, arrumei uma ficha (artigo de colecionador) e fui ao orelhão telefonar para o rapaz. Esse movimento mudou minha vida.