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4 de janeiro de 2012

Fronteiras

Sempre sonhei com espaços. Casas, claras e ensolaradas ou fechadas e escuras, uma cidade de paredes sem teto, pedreiras, parques com fontes, escadarias que dão para um promontório onde eu vôo... o espaço é um marco, um formador de identidade.
Não é à tôa que a humanidade está tão louca. Entulha-se em espaços reduzidos, desprovidos de ar e de beleza, por uma sobrevivência que só garante bens materiais... tranca-se em casa em busca de proteção, mentindo para si mesma e para o mundo, buscando escapar dos demônios que estão dentro de nós mesmos... cultivamos pedras, que abatem árvores ou flores.
Um barco é uma piada escrachada com quem vive tentando demarcar território. Pra que?
E Morning Glory assim ia, conquistando espaços. Villefranche sur Mer. Antibes. Ela queria ir mais longe, certamente.
Um barco também é um espaço reduzido, mas que se move no espaço. Um barco é uma fronteira mutável! Mata essa charada!
Tenta impedir um povo de desembarcar em alguma praia longínqua! Precisa de guerra pra isso... aliás, a guerra É ISSO: uma luta pela mantenção de fronteiras estúpidas. Fronteiras causam espanto. E só protegem momentaneamente.
Já a paciência, o amor, a compaixão... são foguetes interplanetários, anos-luz à frente dos mortais. Nos levam a outros planetas.
A maior aventura do ser humano é relacionar-se. Um relacionamento é um barco, com leme e vela, mas o vento que o conduz é totalmente imprevisível. As pessoas são livres para mudar o rumo a qualquer momento. Cada um pro seu lado, beijos, nos vemos!
Não tenhamos medo, porém. Chega-se, de mil maneiras, a lugares maravilhosos, surpreendentes.
E olha que chegamos. Ao fim.
Ali, eu quis voltar.

25 de dezembro de 2011

O Equilibrista

Nem sempre aquilo que a gente sonhou é, realmente, o que a gente sonhou.
Aliás acho que quase nunca. Se a gente sonhou demais ou foi longe, o sonho sempre pega a gente de surpresa quando a gente menos espera, nos nossos piores defeitos, e a água bate tanto até que fura, mas dói. Ninguém quer se livrar daquele sonho antigo, ser modesto, reconhecer que não precisa. 
Fala sério, quem quer isso? Quem quer abdicar do príncipe encantado, da sorte de ganhar na megasena, da mentira de ter um filho perfeito, ou de se crer alguém especial, fodão, az no volante, perigo constante... ou é isso ou é olhar-se no espelho e encarar que comeu rabanadas demais no Natal, e tomou cerveja demais o ano todo, e está barrigudo e chato, e está ficando velho? Ui...
Mas é preciso dirigir os exércitos contra si mesmo, a vida exige isso de tanto em tanto.
Equilibrar as coisas é essencial. Modéstia é essencial. É feito o humor.
A sorte é se a gente sonha pouco - daí o mistério sempre pega a gente na abundância, garantia de sensação de gratidão.
E esse foi o caso do Paul, que realmente mereceu. Pois é um verdadeiro equilibrista, fato.
O Morning Glory viajou muito por aquelas águas do Tirrenio. Eu até tive a coragem (e loucura) de levá-lo com um tripulante inexperiente, sem carta náutica, para a Liguria. Foi o teste máximo de ciúme pro Paul - pelo barco e por mim. Claro que ele não passou - ou melhor, eu não passei.
Mas fui sincera, pois esse tipo de coragem é de minha natureza. E apesar do tripulante ser um italianinho jovem malhado, e bem desejável, eu só queria ir de encontro a ele. Só.  


15 de dezembro de 2011

TER

Pra que TER? Questionei, como sempre, essa questão de possuir - e dessa vez, um barco! E após se TER, o que FAZER com aquilo que se tem? Que responsabilidade imensa - pensei. 
Não estava errada.
Um veleiro é custoso de se manter. A idéia era fazer charter, ou seja: passeios. O que fazíamos em barcos de terceiros, agora, estava a nosso cargo. Não me agradava a idéia, fui sincera. Mas como era a realização de um sonho... participar do sonho VALEU A PENA.
Aturar aquele povo fútil e fora da realidade que embarca em veleiros de salto alto e sem querer molhar a bundinha, no entanto, é dose pra leão.
Estávamos em La Maddalena quando o Paul viu, pela primeira vez, o Morning Glory, um Sparkman Stevens de 43 pés, bojudíssimo (orça bem), lindo, mas em estado de aparente abandono. Soubemos que era resultado do espólio de uma separação entre alemães. 
Depois de alguns contatos, entramos no meu Renault velho de guerra, com motor dois tempos, e pegamos a estrada pelos alpes alemães, até chegarmos a Garmisch-Partenkirshen. Lá, conhecemos a proprietária do barco: com dois filhos, muito afetada pela separação, ela aceitou prontamente a oferta, e foi tão generosa, que nos alojou em casa, e nos deu de comer o arroz-com-feijão alemão: salada de batata com salsicha.
Foi dessa forma que compramos um veleiro em plena região de montanha, em apenas 30 minutos (pois lá os cartórios realmente funcionam!!!!), e com neve até os joelhos.
Esse fato nos fez encarar de frente o que é TER. A bem da verdade, é um verbo que serve de base para definir socialmente toda a condição humana. Pensa bem: o que é ter uma casa? E uma família? O que é ter um amor? E ter uma doença, o que é? O que é ter um filho? 
Será que "temos" mesmo = possuir, valorar, e consequentemente, julgar? Ou será que um verbo melhor para isso não seria "SER PRESENTEADO PELA VIDA"?  


7 de dezembro de 2011

Limbo

Me diz se concorda - nós humanos, somos bem gulosos, não? Porque precisamos de mais e mais o tempo todo? Que papo é esse de evolução e tudo o mais???
O momento após nos darmos conta que o sonho foi realizado é crucial. A semente da continuidade está aí. Chamo esse momento de limbo. De primeira é uma satisfação só. Depois, a gente se sente desesperado, desolado, triste, como se o amor tivesse terminado. Mas, cuidado! Amor não é paixão. Se a gente entrar na dança niilista, acaba acreditando mesmo que nada valeu a pena. Mas não é assim.
O limbo é permanentemente grávido.
A semente nós já plantamos, mesmo antes do novo sonho surgir na mente. E é ali que acontece o momento mágico do embrião romper a casca. Aí está o segredo da sustentabilidade: adaptabilidade, amor, vontade de viver, cooperação, mente saudável, devoção.
Assim foi depois do Alzavola.
Dizíamos: nossa, já fizemos tanto, e ainda há tanto por fazer. Mas não mais desse jeito. Tem que ser de um jeito novo.
Foi aí que conhecemos o Lucca, um dentista, aficionado por motos antigas, que mora em Bologna. Ele arrancou meus sisos com tanta precisão e destreza que meia hora depois, já estava comendo pizza. Fazia isso com um instrumento parecido com um saca-rolhas. Minha mordedura estava tão errada que ele me levou a um colegiado de dentistas para que examinassem como aquilo havia afetado os meus músculos buco-faciais. Curioso é que nem eu nem o Paul jamais havíamos notado isso.
O Lucca ficou muito amigo do Paul e nos convidou para trabalhar na praia, vendendo picolé e sanduíche, e ofereceu, ainda, hospedagem na casinha dele em La Madallena, uma ilhazinha bem ao norte da Sardenha. Olha só uma foto de lá. Adivinha se a gente aceitou ou não.
A Sardenha é uma ilha com pedras magníficas e água azul cristal, gente muito simples que fala o Sardo (que nada tem a ver com o italiano), javalis aos montes, resorts estupendamente caros, e nenhuma árvore de sobra, além das que produzem cortiça.
Nossos vizinhos nos convidavam para jantar de vez em quando, simplesmente dizendo “aiô”. O senhor servia um terrível vinho caseiro e a senhora, deliciosas e inesquecíveis massas, como o raviolão de ricota di peccora (ovelha) com limão, servido com molho de carne assada, e o fetuccini com molho de cabeças de passarinho. Claro, a sala de jantar era tão escura que só descobri que eram cabeças de passarinho bem depois de comê-las.
Assim fomos juntando uma grana para realizarmos o nosso novo sonho: um barco próprio. Ou melhor, o sonho do Paul. Conseguimos.
Porém, não era o meu sonho. Naquela época eu já começava a pensar em voltar pro Brasil. Pena que eu não tinha muita idade e não soube apreciar aquele momento tanto quanto merecia. Mas valeu a pena. E quanto.

Eu vendendo picolé

26 de novembro de 2011

Alzavola

E então deixamos a Europa no Alzavola, um ketch de 77 pés construído em 4 centímetros de teca birmanesa, que pode ser chamado de "Clássico Aconchegante". Aliás, muito bem administrado por seu proprietário, um respeitado navegante e arquiteto florentino: Enrico Zaccagni, ou simplesmente, Kiko. Simples assim. E ele é simples mesmo. Um verdadeiro pirata na alma.
Detalhe: pirata rádio-amador. Porque esse não joga os cabelos ao vento, não. Ele dissemina a palavra - em italiano - pelos sete mares desse mundo.
Vale saber que esse barco foi construído em 1924, em Dartmouth, pela Philip & Son, para Sir Walter Ramsey Kay, e Zaccagni a abraçou há 36 anos, ainda como Gracie III.

É navegar com pessoas como Chicco, um verdadeiro poeta do mar, e Nicole, grande mamma italiana, a bordo de veleiros como o Alzavola, que é um sonho vivo, e bem mantido, que fazem valer a pena velejar a qualquer preço.
Em geral, melhor lembrar que nós temos valor, pois tudo tem limite.
Saúde, e Obrigada, vida, pelo que me deu. 

Chicco (Kiko) e sua equipe no Alzavola em regata

24 de novembro de 2011

Quando Menos é Mais

Em Antibes trabalhamos por algum tempo a bordo do Speedy Go. Era um lindo Maxi de regata transformado em iate de luxo, com o interior todo em madeira de pera, tapete branco e o escambau. Chique mesmo. O proprietário era algum político italiano que nunca conheci (ainda bem). Nem é preciso dizer que ralei muito. Um casal de italianos chegou um tempo depois: Cinzia e Piero. Ela fazia os melhores sanduíches desse planeta e de outros. No final, nos ofereceram para acompanhá-los a bordo, destino ao Pacífico, mas recusamos com carinho, o que, no final, foi muito bom - ouvimos dizer que a Cinzia deixou o Piero em alguma ilha remota e fugiu com o Australiano que foi constratado no nosso lugar.
E como se não bastasse, também trabalhei a bordo de outros veleiros. A bordo do Arayan melhorei meus conhecimentos gastronômicos e aprendi a aproveitar a maravilhosa cave cheia de Chablis...
O Arayan também nos levou a uma regata em Saint Tropez onde tive a alegria de velejar pertinho do Eric Tabarly e seu Pen Duick. Ele era um belo homem - sorridente, simples, positivo, um privilégio de se estar ao redor. Um pouco depois (1998) a criatura desaparece no mar.
Aceitar mentalmente o fim é difícil, mas algo que precisamos aprender. Aceito melhor quando penso: é quando menos é mais.

Eric Tabarly a bordo do seu Pen Duick

19 de novembro de 2011

Liberdade

Salvos pelo gongo. Lá fomos nós embarcados no Maxi Speedy Go, com gente muito alegre e divertida, e Phillipe Barbé, o capitão francês de temperamento suave. Só não dava para falar a palavra lapin - o cara arrancou as receitas de coelho do livro de culinária de bordo - e nem fazer qualquer coisa importante na sexta feira. Superstições do mar, pra que te quero. A rota foi Faial - Gibraltar - Málaga (vinho jerez de primeira) e Antibes. Que barco! Com a empopada dava pra surfar e fazer uns 18 a 20 nós.
E que beleza a Côte D'Azur! 
No Port Vauban, em Antibes (checa o visual), quando sopra o Mistral dá pra ver a neve no topo dos Alpes - com aquele castelo ao fundo, é deslumbrante. Acabamos alugando um apartamento lá porque continuamos trabalhando no Speedy Go... mesmo após a entrega.
Ali, algo muito mágico nos aconteceu. 
Um dia fomos a praia e decidimos, do nada, escalar os remparts (o muro de pedra) da cidade. Quando chegamos em cima, viramos pro lado e pertinho, havia um petrel do mar estatelado no muro, com o olhar super assustado. Imediatamente fomos pegá-lo e constatamos que ele havia perdido a capacidade de vôo, pois estava com patas e parte das asas cobertas de resina de pinheiro - o sul da França é cheio dessas árvores.  
Levamos o pássaro ao barco e começamos a tentar remover a resina. O pássaro, estressadíssimo. Após tentar banho de água e sabão, e álcool, conseguimos remover a maioria com um algodão embebido em tricloro etileno, e finalizamos a operação com polvilho antisséptico Granado. O bicho revoltado bicava a mão do Paul sem parar, mas resistimos. Levamos a ave pro deck, onde havia uma ruazinha, e soltamos o petrel em cima de um carro. Me lembro como se fosse ontem dos piados, que soavam como bronca, e, de fato, a sua expressão era de um bicho aborrecido. De repente, do nada, o pássaro alçou vôo, deu um rasante no espelho d`água - a ponto de acharmos que ele ia afundar - e começou a subir, subir, subir, subir.... até desaparecer no céu.
Foi uma cena tão gratificante - tão bom libertar uma criatura assim, que essa sensação ficou imprimida na minha alma pra sempre. Bom compartilhá-la com vocês.